Corpos que guardam histórias transformam o Pequeno Auditório do CCB

Há espetáculos que chegam com delicadeza, mas permanecem como pequenas revelações. A esta hora, na infância neva, nova criação de Victor Hugo Pontes para a Companhia Maior, é um deles. Não pela grandiosidade, mas pela rara combinação de subtileza, fisicalidade e presença, uma celebração do corpo que viveu, experimentou, acumulou histórias e continua, ainda assim, disponível para reinventar o próprio movimento.

Pontes, conhecido por explorar a dramaturgia do corpo com uma sensibilidade quase cinematográfica, troca aqui o vigor dos intérpretes jovens por outro tipo de energia: a da maturidade. Não se trata de suavizar a dança, mas de revelar camadas que só o tempo escreve na carne. Nesse sentido, o elenco é o grande motor poético da peça. Os corpos mais velhos carregam memória, intenção e um ritmo que não precisa correr para ser intenso; os mais jovens, em contraste, funcionam como reflexos, contrapontos e, às vezes, pequenas janelas para o que fomos ou gostaríamos de ter sido.

O espetáculo joga com essas tensões, num diálogo contínuo entre experiência e descoberta, entre força e fragilidade, entre aquilo que se perde e aquilo que, com o tempo, ganha definição. Há momentos em que a fisicalidade parece uma narrativa própria, e é, porque Pontes costura gestos com precisão emocional, apoiado por uma cenografia simples de F. Ribeiro, uma luz sensível de Wilma Moutinho e figurinos de Cristina Cunha que parecem prolongamentos das biografias dos intérpretes.

A referência ao poema Le déserteur, de Boris Vian, não entra como discurso, mas como vibração, um eco de rebeldia, memória e melancolia que amplia o território simbólico do espetáculo. Como em tantos trabalhos da Companhia Maior, o palco torna-se lugar de resistência: resistência contra o apagamento, contra a invisibilidade, contra a ideia de que a idade limita a invenção.

A peça é também um elogio ao presente, esse tempo onde, como escreveu Manuel António Pina, “as cicatrizes do coração permanecem” e, apesar delas, ou talvez por causa delas, a infância reaparece. Não uma infância ingênua, mas refinada, filtrada pela experiência, carregada de entendimento.

O resultado é um espetáculo que emociona sem sentimentalismo, que pensa sem ser hermético e que dança sem pressa, porque a pressa, aqui, não é necessária. É um elogio ao corpo, à memória e ao prazer de continuar em movimento.


Info

Espetáculo: A esta hora, na infância neva
Companhia: Companhia Maior
Direção Artística: Victor Hugo Pontes

Datas: 7, 8, 10 e 11 de dezembro
Horários:

  • Domingo às 17h00

  • Segunda, quinta e sexta às 20h00

Local: Pequeno Auditório, Centro Cultural de Belém (CCB), Lisboa

Mais informações: www.ccb.pt