A Cadeira – Conto de Luiz Carlos Lacerda (Parte 02)

A Cadeira é um conto do cineasta (realizador), roteirista e produtor Luiz Carlos Lacerda. Dividido em quatro partes, confira abaixo a segunda publicação do conto. Divirta-se!

A CADEIRA (Parte 02)

Português da mobília

Acompanhado por um português de seus 40 anos, olhos claros denunciando sua ascendência do Norte, percorria o apartamento todo. Atento ao olhar do comprador dos móveis, que ia balbuciando valores com os quais ele não concordava. “Mas o cristal bizoté não é um espelho qualquer, o senhor me desculpe! Eram de minha família – que veio para o Brasil acompanhar a princesa Leopoldina.” “Leopoldina, em Minas?” “Não! A esposa de Dom Pedro I” – respondeu indignado com a ignorância do comprador, dono de uma loja de móveis usados na Rua Pedro Américo. Em frente à Delegacia, onde em 1921 o escritor João do Rio morrera, de um ataque fulminante do coração, dentro de um taxi, chamado de carro de aluguel naquela época, segundo a biografia do escritor.

Luiz Eusébio

Acertados o dia e a hora para retirada da mobília, Luiz Eusébio combinou com Jordana que viesse para acompanhar o translado, uma diária extra. Ele não queria testemunhar o descumprimento de sua promessa feita à sua mãe no seu leito de morte. Pensando bem, nutria um certo ódio por esses objetos que permanecerão, inalterados, após a nossa morte. Eles não mereceriam isso! Arranjava um pretexto para aplacar a sua culpa. Iria à igreja no Largo do Machado, pedir perdão à alma de sua querida mãe, em rezas que durassem o tempo da retirada dos móveis.

Á noite, estirou-se no sommier da sala, de florões já desbotados pelo tempo, e com algumas almofadas esgarçadas pelas unhas da gata angorá, que foi sua companhia afetuosa durante quase 16 anos, a Vilia – nome de uma cigana de uma Ópera. Na sua cabeça, dividia-se entre a cena de sua mãe suplicando-lhe que não vendesse os móveis, e o salão da Fazenda, onde molhava o bolo de garapa feito pelas mãos das empregadas, no secular fogão à lenha da cozinha imperial, no café com leite servido em baixelas de prata ou no serviço de estanho inglês polidos diariamente.

Jordana

Levantou-se para tomar o leite de todas as noites e molhar o pão trazido naquela manhã. Serviu-se e não teve coragem de entrar no quarto. Bastava imaginá-lo vazio, sem mais nada. Apenas com as marcas nas paredes protegidas pelo o que fora retirado. Uma brancura que a pátina do tempo não conseguira penetrar, como se dizia antigamente.

De repente, como quem desperta de um pesadelo, afligiu-se : Será que Jordana teria lembrado de retirar do armário a toalha de mesa bordada por Eulália?

A toalha de Eulália.

Eulália

Solteirona, ela ficara como uma mobília familiar, dessas que vão passando de mão em mão, adornam por um tempo um canto de uma casa e, mesmo sem serventia, vão sendo esquecidas, até mudar de endereço. Assim era ela. Morou a vida toda com Dona Leocádia, sua madrinha e tia. Eulália era filha temporã de sua irmã do meio. Na época da Fazenda, chegou a estudar o básico, mas logo demonstrou dificuldades de aprendizado e foi ficando ali, debruçada na janela, contando os bois que passavam. 32 brancos, 18 malhados e 49 pretos. Anotava num caderninho. Quase não saia para a cidadezinha próxima – São Luiz do Paraitinga.

Num Carnaval , acompanhando as primas em férias na Fazenda, arriscaram-se, instigadas pela curiosidade, e lá foram elas pra desanimada festa do interior. Eulália foi cercada por um bloco de homens fantasiados de diabos – o que a deixou atordoada e serviu de motivo para não voltar mais lá enquanto durassem os folguedos.

Certa vez, contou indignada que tinha sido “mal atendida” na farmácia. Zé do Hugo, o farmacêutico, mesmo após ela repetir algumas vezes o remédio que queria, não lhe respondeu, mantendo os braços levantados – como um Polichinelo. Aborrecida, retirou-se e voltou pra casa. Todos riram de sua história. “Você não percebeu, Eulália, que ele estava sendo assaltado?” Apavorada, Eulália desmaiou na sala de casa, na hora!

Com a venda da Fazenda e a mudança pro Rio, e já órfã, coube à sua madrinha a guarda de Eulália, que veio morar no apartamento do Flamengo. Dividiam-na com uma primas que moravam numa confortável casa no Cosme Velho, vizinhas do presidente da Academia Brasileira de Letras Austregésilo de Athayde. Em frente, havia o ponto final de uma linha de ônibus.

Motorista/cobrador

Sempre à janela, avistou um rapaz moreno, de seus 35 anos, de braços fortes, vistoso, sempre com camisas apertadas que realçavam sua musculatura e com um gesto afastava a franja lisa e muito preta de sua testa suada. Provavelmente cobrador ou motorista de um dos veículos. Pois sua presença passou a preencher os seus dias. Chegou a marcar no relógio da sala o tempo que durava o percurso e o seu esperado retorno. Via-o sair, e então ia se ocupar dos bordados que fazia com esmero e um invulgar talento, ou das flores de papel disputadas pela família inteira, especialmente pelas primas beatas – que enfeitavam os altares da igreja na festa de São Judas Tadeu, perto de casa. Passadas umas duas horas, duas horas e meia, ela corria à janela para ter a visão que tomava conta cada dia mais da sua fantasia, o rapaz.

Continua… | Próxima publicação dia 09/02/2021. A não perder!


Elenco:

Luiz Eusébio – Nildo Parente (In memorian)
Jordana –
Catarina Abdalla
Eulália –
Marcelia Cartaxo
Motorista ou Cobrador (o noivo de Eulála) –
Armando Babaioff
Português da mobília – Henrique Pires
Carregador do burro-sem-rabo –
Tarcísio Vória
Porteiro –
Mano Melo

Coluna – Luiz Carlos Lacerda
Luiz Carlos Lacerda é Realizador, Roteirista e Produtor brasileiro, com extenso currículo no cinema brasileiro, tendo dirigido séries para TV sobre. Foi professor do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá (RJ), Escola Internacional de Cinema de Cuba, Polo do Pensamento Contemporâneo, Nós do Morro (RJ) e de diversas oficinas em mostras de cinema. É membro do Conselho do Museu Nacional de Belas Artes (2018/2019) e da Associação Brasileira dos Cineastas. Poeta, colaborador de vários suplementos literários e antologias poéticas.