A Cadeira – Conto de Luiz Carlos Lacerda (Parte 01)

A partir de hoje será publicado na coluna de Luiz Carlos Lacerda um conto escrito pelo próprio chamado A Cadeira. Uma opção para navegar na mente criativa do cineasta (realizador), roteirista e produtor. O conto será dividido em quatro partes que serão publicadas semanalmente neste espaço. Divirta-se

A CADEIRA (Parte 01)

Dona Leocádia, no leito de morte, pediu ao seu filho único, Eusébio Luiz, que jamais se desfizesse da bela mobília de quarto – que lhe caberia como herança, além do amplo apartamento da Praia do Flamengo, onde moravam. Os móveis tinham sido de sua avó, amiga da Imperatriz Maria Leopoldina, a austríaca que acompanhara a princesa, em sua viagem ao Brasil para casar-se com o Imperador D. Pedro I.

Luiz Eusébio

Durante toda a sua longa vida, Eusébio Luiz, sempre que passava por algum aperto financeiro, olhava os móveis, seu único bem, além da ampla e dispendiosa moradia. Mas logo vinham-lhe à cabeça as últimas palavras de Dona Leocádia, antes do suspiro final, nos braços molhados de lágrimas do filho.

Custava-lhe muito manter aquilo tudo, os retratos dos barões austríacos, seus bisavós, os estofados do recamier que tinha levado pra sala de visitas – que aliás não aconteciam mais, os amigos ou ficaram muito velhos pra se locomover, ou os perdera de vista, a prataria oxidada por falta de lustrar, a pintura das paredes em alguns lugares com a queda do reboco deixando transparecer pinturas e cores anteriores, e o cortinado da sala amarelado pelo tempo – que a ventania ajudava a estraçalhar.

Impávido, alheio àquele cenário decadente que evocavam em sua memória os dias gloriosos de recepções, resultado dos negócios do café, ainda mantidos nas fazendas de sua família no Vale da Paraíba, apesar da Abolição ter reduzido o seu cultivo e a queda nas bolsas de valores. Luiz Eusébio, que não conseguira terminar o Curso de Direito na Suíça , nunca se especializou em nada. Se orgulhava de não ter que trabalhar – como vira, numa entrevista na TV, um dos Guinle vangloriar-se disso.

Jordana

No mesmo edifício, aliás, a família tradicional que construíra inúmeros prédios nobres na cidade, como o Copacabana Palace, o Palácio das Laranjeiras, mantinha um apartamento com um de seus membros, orgulho da vizinhança que lhe dava status social. Para Eusébio, outro motivo a ostentar e espanar aquela poeira de decadência que dominava até a sua alma solitária, como uma doença corrosiva. Vagava, como um fantasma de si mesmo, fechando os olhos quando o vento balançava os penduricalhos do lustre de cristal da Bohemia, até se dar conta que o leite que tomava á noite tinha acabado. E agora? Descer à padaria – a essa hora infestada de pobres à espera da última fornalha de pão barato? Jamais. Abria o pacote de pão de forma, com grãos especiais e sem glúten, e passaria um pouco da manteiga que sobrara no papel laminado, deixado por preguiça de colocá-la na manteigueira de louça opaca e cor de rosa, em forma de galinha, que estivera nas fartas mesas da sua Infância . Ainda havia pó de café suficiente para encher a garrafa térmica. Amanhã pediria à Jordana, a diarista, que descesse para as compras, depois de descontar seu cheque da pequena aposentadoria que recebia, por ter idade suficiente que lhe dava esse direito.

No dia seguinte, ao autorizar sua subida pelo interfone, apanhou o envelope deixado na mesinha ao lado da entrada. Não queria lembrar-se do seu conteúdo. A cobrança de quase um ano de taxas de condomínio, com seus juros e devidas correções monetárias. Atendeu a campainha de casa ungido pelo mau humor despertado por essa lembrança. O que fazer? Corria o risco de ter sua moradia leiloada e ele não ter onde morar. Precisava dar um jeito nisso, mas por enquanto precisava de leite, pão quentinho e alguma coisa para Jordana preparar para o almoço.

Trêmulo, preencheu o cheque, avisando que ali também estavam incluídos a diária e a condução dela. Jordana acedeu, num gesto com a cabeça. E o que o senhor quer pro almoço?

Qualquer coisa! Qualquer coisa!

Continua… | Próxima publicação dia 2/2/2021. A não perder!


Elenco:

Luiz Eusébio – Nildo Parente (In memorian) |  Jordana – Catarina Abdalla Eulália – Marcelia Cartaxo | Motorista ou Cobrador (o noivo de Eulála) – Armando Babaioff  | Português da mobília – Henrique Pires | Carregador do burro-sem-rabo – Tarcísio Vória | Porteiro – Mano Melo

Coluna – Luiz Carlos Lacerda
Luiz Carlos Lacerda é Realizador, Roteirista e Produtor brasileiro, com extenso currículo no cinema brasileiro, tendo dirigido séries para TV sobre. Foi professor do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá (RJ), Escola Internacional de Cinema de Cuba, Polo do Pensamento Contemporâneo, Nós do Morro (RJ) e de diversas oficinas em mostras de cinema. É membro do Conselho do Museu Nacional de Belas Artes (2018/2019) e da Associação Brasileira dos Cineastas. Poeta, colaborador de vários suplementos literários e antologias poéticas.