Cinemateca Portuguesa declara solidariedade à Cinemateca Brasileira

Em comunicado de imprensa pela Cinemateca Portuguesa, a Direção Geral declara solidariedade e apoio ao novo desastre patrimonial na Cinemateca Brasileira – incendiada em 29 de julho.

 

Na noite do passado dia 29 de julho, as instalações da Cinemateca Brasileira em São Paulo foram alvo de mais um gravíssimo desastre que acarretou perdas patrimoniais consideráveis cujo alcance está por avaliar: um violento incêndio deflagrou numa das suas áreas de conservação, neste caso uma área complementar dos depósitos principais da instituição que se situam noutro local da mesma cidade.

Nas instalações afetadas estavam guardadas importantes coleções de filmes (cópias em película de 35mm de filmes brasileiros e estrangeiros, mas também matrizes de conservação de documentários e jornais de atualidades), documentos bibliográficos inestimáveis da história do cinema no Brasil (parte dos arquivos de extintos órgãos estatais de cinema, como o da empresa Embrafilme, ou de acervos entregues à C.B. como era o caso do arquivo “Tempo Glauber” dedicado à memória de Glauber Rocha) e ainda coleções de aparelhos de interesse museológico.

Este é o terceiro desastre ocorrido na Cinemateca Brasileira nos últimos cinco anos (depois de um incêndio em 2016 num outro depósito para materiais fílmicos muito inflamáveis situado no complexo principal e de uma inundação em 2020 que afetou o exato local agora sinistrado), e, independentemente das causas diretas do fogo, não pode deixar de estar relacionado com a inédita e gravíssima situação de exceção imposta pelo Governo Brasileiro àquela instituição, hoje impedida de funcionar e de cumprir as mais elementares funções de salvaguarda que lhe estão consignadas.

Na sequência de medidas político-administrativas cegas que começaram por quase paralisar a instituição (em nome de supostas “reformas” que, na prática, apenas fizeram retroceder o apoio do Estado federal obtido em 1984, chegando ao ponto de excluir a instituição da tutela do Ministério da Cultura e gerando um total vazio de apoio governamental), a atividade da C. B. foi suspensa por inteiro no dia 7 de agosto de 2020, altura que a equipa então remanescente foi demitida e formalmente impossibilitada de aceder às instalações. A partir daí, nenhum técnico de arquivo pôde sequer verificar o estado de coleções e equipamentos de conservação, permanecendo a integralidade das coleções patrimoniais sem qualquer ato de vigilância ou de simples verificação por parte de alguém com conhecimento de causa. Desde praticamente há um ano, o que era uma situação de crise imposta, inusitada e injustificada, atingiu assim o paroxismo, interrompendo de forma radical uma atividade desenvolvida ao longo de sete décadas, e que há muito se tornou de referência, não só no continente sul-americano mas também no contexto mundial de salvaguarda do património cinematográfico.

Infelizmente, este não pode portanto ser visto como mais um “acidente” trágico com perdas patrimoniais, mas um autêntico desastre anunciado, para o qual a equipa da C.B., que nunca desmobilizou, insistentemente alertou as autoridades brasileiras. Com toda a propriedade e justiça, o “Manifesto dos trabalhadores da Cinemateca Brasileira” sobre este incêndio tem como título “Um crime anunciado!”. Quantos mais poderão ainda ocorrer?
Toda esta situação desencadeou já enorme clamor internacional, com fortes manifestações de solidariedade por parte dos principais organismos internacionais desta área e de inúmeras cinematecas em todos os continentes.

Desde o início, a Cinemateca Portuguesa tem integrado esse clamor, juntando a sua voz ao movimento internacional. Agora, perante a persistência desta situação paroxística, incompreensível e absolutamente inaceitável por parte de quem quer que se preocupe com a salvaguarda do património cultural da humanidade, lançamos novo e veemente alerta sobre os perigos de sobrevivência estrita do património ao cuidado da Cinemateca Brasileira, manifestamos a nossa inteira solidariedade para com os seus trabalhadores, e declaramos a nossa intenção de levar a cabo iniciativas públicas regulares de apoio à instituição.

O património cinematográfico não tem fronteiras, o que converte qualquer cinemateca do mundo num elo insubstituível de uma cadeia maior, que não pode ser quebrada sem que haja consequências para o património mundial. A paralisação da Cinemateca Brasileira tem de ser sustida, e os seus trabalhadores têm de poder voltar aos seus postos, para proteger as coleções que só eles podem e sabem proteger, e que são em si mesmas o resultado da ação continuada deles próprios e de várias gerações de grandes obreiros deste trabalho incessante que os antecederam.

O nosso primeiro ato público de solidariedade para com a Cinemateca Brasileira ocorrerá nos primeiros dias do próximo mês de setembro. Outros se seguirão regularmente, numa vigília dedicada àquela instituição e ao cinema brasileiro, até que os nossos colegas de São Paulo possam retomar o lugar e a ação que lhes compete.

A Direção da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em 3 de agosto de 2021

José Manuel Costa
Rui Machado