O Diretor de cinema Luchino Visconti, marxista de família nobre, um dos principais nomes do Neorrealismo italiano, autor de obras primas como Rocco e seus irmãos, Ludwig, Os deuses malditos, Morte em Veneza, detalhista da imagem de forma a associarem sua obstinação com a escrita de Marcel Proust (Em busca do tempo perdido),dirigiu seu último filme, O Inocente, numa cadeira de rodas.
Não há nenhum sinal, em todo o seu filme, que acene ou sugira uma consciência da Morte. Ao contrário, o mesmo rigor marca sua dramaturgia e, especialmente, o foco seletivo por onde seu olhar se detém, atento, numa celebração da Beleza e da Vida – no mesmo exacerbado grau
vislumbrado em toda sua vasta Obra, testemunho de vitalidade e triunfo sobre a existência humana e suas manifestações vibrantes.
Se em Rocco é a miséria que no entanto não corrompe a Esperança e o curso dos sentimentos – num espetáculo marcado pela urgência de fazer sobreviver o Amor, em Morte em Veneza e Ludwig é a luta contra a falência da matéria que só a Beleza é capaz de vencer e se impor, apesar da decadência que pousa sobre tudo que toca a mão do Homem, menos os seus sentimentos.
Seu filme Obsessão (1943), a quem é atribuída a pedra inaugural do movimento cinematográfico, apesar de seus anteriores Belissima e A terra treme, marca o início da abordagem da temática homossexual na sua vasta Filmografia, vista pela quase sempre vesga crítica cinematográfica e pela então poderosa ascensão da extrema direita na Itália, com a reserva moral que coloca, pari passo, essas forças aparentemente antagônicas, mas sempre no mesmo paralelismo ideológico preconceituoso.
A corajosa adaptação do romance de James L. Cain – e a livre inclusão desse conflito no até então intocado mundo do desejo masculino diagnostica a força vital desse criador contraditório e provocador.
O Cinema de Visconti recusa-se a entregar suas armas de vigor existencial.O drama é um labirinto onde seus personagens se chocam para, na dialética hegeliana, dar um passo adiante, buscar uma saída e revelar-se, impiedosa, no desmanche de tudo o que possa significar maquiagem da realidade – como na cena final de Morte em Veneza, e o desmanche da tintura dos cabelos do personagem interpretado por Dick Bogarde.
Ao retirar-se desta vida, em seu manifesto e testamento que reveste-se deste significado, O Inocente deixa, na História da Arte e do Cinema, uma imagem transida de despedida – a figura feminina, no Plano final do filme, vai se afastando, de costas para a câmera (o público) e vai saído de foco até metamorfosear-se em cores e leve movimento – constituindo a uma imagem que evoca o movimento Impressionista em sua forma e essência.
Entra para a Eternidade reafirmando a inserção do Cinema no rol da expressão da Arte. Os pintores brasileiros Cláudio Valério Teixeira e Júlio Paraty, figurativos, um de origem acadêmica e o outro dos mais expressivos artistas do viés classificado como naive, relacionam-se através de seus trabalhos e/ou de postura existencial, no enfrentamento face-a-face fora do limite da tela, manifestando a consciência no ritual de despedida que, inconscientemente, suas posturas anunciam em suas derradeiras obras.
Cláudio, em sua última exposição – cujos trabalhos foram produzidos na quarentena – trincheira contra a morte que, inevitavelmente, o venceu contaminado pela Peste deste século sombrio, apresentou um revelador autorretrato, exposto logo na entrada , onde aponta seus pincéis para quem ousa enfrentar o seu olhar potente, ao mesmo tempo melancólico com que parece anunciar uma iminente partida.
Mas enfrenta o espaço para além da moldura, num salto que marcou a Obra de Lygia Clark ao libertar-se da tela e se lançar no espaço físico com seus Bichos metálicos. Ele não pretende o mesmo salto, mas assume o gesto metafórico de um diálogo subjetivo com o futuro – na contramão do caminho pelo qual Visconti optou : um para dentro, tornando-se manifestação pura de seu discurso; o outro, para fora, desafiando os que insistem em permanecerem observadores de sua Obra, na cumplicidade dos que, vivos, dão o aval para a sua permanência catalogada.
Júlio Paraty, no filme que realizei sobre seu trabalho – uma imensa produção de imagens evocativas das festas religiosas e do cotidiano de sua cidade natal à qual homenageou acoplando seu nome à sua assinatura, está marcado pela urgência. A urgência que sugere a consciência de que seu tempo se esgotará a qualquer momento (como essas pessoas cuja vida breve foi marcada pela intensidade, como Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Marilyn Monroe e Leila Diniz).
O colorido de seu mundo pictórico idealizado – povoado de anjos, arcanjos, sereias e títulos paradisíacos que denotam uma relação platônica da vida – celebra a existência numa interminável festa, registrando todas as que conheceu e são marcas da identidade cultural de Paraty.
No filme da série Atelier do Artista, a caminhada do artista por sua cidade, em visitação às suas telas espalhadas por vários centros culturais (anterior à sua grande Retrospectiva promovida pelo Museu Nacional de Belas Artes no inicio de 2020), e às residências de colecionadores, na maioria das cenas filmadas em planos gerais, se ressalta a integração dele com a cidade – universo, terreno e tema de seus quadros, até ele aproximar-se da câmera, como se quisesse dar algum recado, dizer a senha de sua Obra para, então, sair de cena e – como Visconti – permitir que tudo permaneça apenas como Cor.
À forma de relacionarem-se com a Morte (logo, com a Vida) desses três artistas, junta-se a declaração de Pasolini, através das palavras de Gioto, no Plano final do último episódio de seu filme Decameron sobre a superioridade perene da Arte sobre a existência humana.
Procurem assistir.
Luiz Carlos Lacerda, cineasta.
Escrito em 2021/2022.