Não é incomum, em períodos sombrios nas vidas de grandes artistas, isolados por razões involuntárias, a produção de importantes e belas obras. Assim foi como Miguel de Cervantes no sec.XVI , escreveu o clássico da Literatura universal D. Quixote de La Mancha, o Marquês de Sade no século seguinte produziu quase toda a sua obra; o sofrido poema de Oscar Wilde, De Profundis, e Recordações da casa do mortos, de Dostievski, escritos em fins do sec. XIX, assim como o nosso Graciliano Ramos de Memórias do cárcere , já no sec. XX. No entanto, não foi na prisão que o pintor Cláudio Valério Teixeira deixa seu testemunho, mas a de sua experiência de artista diante da emergência de uma quarentena provocada por uma peste planetária. Limitado ao universo quotidiano de sua casa, ele registra tudo aquilo que o cerca.
Desde as naturezas-mortas espontaneamente deixadas sobre a mesa do café da manhã, sem a pretensão dos arranjos encontrados nas pinturas dos barrocos holandeses do sec. XVII, ou do modernista italiano Giorgio Morandi e seu discreto equilíbrio dos elementos, ou das collages matemáticas do gaúcho Carlos Scliar mixando partituras musicais, arcos de violinos, com frutas brasileiras ou letras do alfabeto.
As de Cláudio Valério Teixeira refletem a desordem do transe dos dias que vivemos, onde papayas semi embrulhados por jornais insinuam o desejo da notícia de um resgate salvador. Há nelas, a serenidade que só o conformismo próprio da maturidade justifica. Como numa decupagem cinematográfica, seu campo de visão vai se utilizando de lentes mais abertas, inconformado com o limite da mesa – e passa a registrar o atelier do artista, com homenagens que visitam desde Monet, a Picasso e ao Volpi com suas cores suaves e calmantes.
Como se se permitisse convidá-los a entrarem com ele , solidários, nesses reduzidos e claustrofóbicos momentos. Mas que não o assustam. Levam-no ao sol , o casal desnudo num paraíso particular às vésperas de inaugurar alguma coisa nova ou surpreendente, deitado nas espreguiçadeiras de seu pátio domiciliar e pinta aquilo que a vista de suas janelas permite alcançar : a árvore, os muros da vizinhança. Mas isso não lhe basta , cautelosamente viaja para uma casa no campo, novamente documenta o seu entorno, passeia seu olhar pelas cercas vivas, alcança a que divide o terreno que lhe cabe, o tronco deixado, displicente, caído no caminho.
Tudo isso, através de aquarelas que denunciam a sua formação acadêmica – e o seu talento de restaurador , como se pedisse emprestado ao Volpi que o visitara, a delicadeza dessas cores que só a aquarela é capaz de tingir aquilo que é objeto de sua eleição. Mas não mascara – em tempos de máscaras e prevenção – a tragédia dos dias que vivemos. Como num grito desesperado de um Munch contemporâneo, reproduz a própria face, transmutada em expressões variadas do desespero e do medo. Que é o medo de todos nós.
Com Beleza e perplexidade.
Luiz Carlos Lacerda, cineasta.