A Cadeira – Conto de Luiz Carlos Lacerda (Última Parte)

Aqui podes aceder as partes anteriores do conto “A cadeira”: (PARTE 1) – (PARTE 2) – (PARTE 3)

 

Parte Final do conto “A cadeira”

Luiz Eusébio

Luiz Eusébio, ao lembrar-se do saudoso tio, procurou com o olhar a cadeira deixada na cozinha. A empregada morava em um subúrbio longínquo e o frete para levá-la não compensava transportar o regalo. Ali estava, impávida, na cabeceira da mesa de fórmica, onde Jordana empilhara a roupa passada à ferro, camisas antiquadas, toalhas, fronhas e lençóis.

Jordana

Ao relembrar a história vivida pelo Tio, esboçou um sorriso, enquanto recolhia as roupas para guardá-las. Mas, súbito, lembrou-se que o armário já não estava mais por lá. Decidiu deixar as coisas como estavam e tratar de organizar a mesa para o lanche noturno, depois de ver o noticiário. Não sabia mais se comia por sentir fome ou para cumprir um ritual ao qual se habituara há tantos anos, na sua cronometrada solidão.

Pela manhã, como era feriado, Dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, ele próprio desceria à padaria para comprar o pão fresquinho. Lembrava-se da tradicional Padaria Esperança, quando visitava Paraty, em férias com a família na Infância, onde comia o delicioso e inesquecível massa pão – uma iguaria à base de ovos e coco ralado. Deveria ser de origem lusitana. Mas ali não havia disso. Talvez em lugar nenhum, passados tantos anos… Foi quando lembrou de como era essencial a presença de Jordana na sua vida.

Carregador do burro-sem-rabo

Foi até a esquina da Praia do Flamengo, lotada de gente à espera da procissão do Santo, mas o rapaz do burro-sem-rabo, um tipo de carreto manual que sobrevivera ao tempo, também deveria estar gozando o dia de descanso ou de festa.

Antes de dormir, assistira na TV as comemorações do dia, e rolou na cama a mastigar pensamentos que não chegaram a afastar seu sono. No dia seguinte, ao acordar mais tarde do que o habitual, dera de cara com Jordana, na cozinha, com a pilha de roupas nas mãos, desorientada. “– Seu Luiz” (era assim que ela sempre o chamara), “o que eu faço com essas roupas?

Luiz Eusébio, ao contrário do esperado, depois de alguns segundos de perplexidade de Jordana à espera de uma explosão de mau humor do patrão, irrompeu num excesso de gargalhadas – no que foi acompanhado por ela – segura e solidária com o desamparo de seu velho companheiro de vida.

Na portaria do prédio, apesar de advertidos pelo porteiro de que “aqui não é lugar pra isso, Seu Eusébio. Mudanças só pela porta dos fundos!” – certamente imaginando que a cadeira era apenas a ponta do iceberg de outros móveis – como fora com a mobília do quarto. Passados alguns minutos de espera, sob um clima solene de cumplicidade acima da luta de classes de que tanto falava Tio Fernando, leitor de Marx apesar de seu gosto e cultura elitistas, apontou à porta do prédio o rapaz do carreto, robusto – pela necessidade do ofício, e metido em uma camiseta sem mangas, como aqueles típicos portugueses do Rio antigo, que Luiz Eusébio conhecia das fotos que ilustravam os 3 volumes de O Rio de janeiro do meu tempo, de Luiz Edmundo, que ganhara do Tio Fernando num Natal. Cumprimentou-os, e esclareceu: “-Vou levar pra minha casa, aqui na Rua do Resende, e amanhã meu primo que faz mudanças numa Kombi leva no endereço em Nova Iguaçu.” “Austin ! Austin!” prontamente corrigiu uma Jordana feliz como jamais se tinha visto.

Jordana
Luiz Eusébio

O jovem amarrou a cadeira com cordas de nylon azul, Luiz Eusébio entregou-lhe umas notas, conferidas sob o olhar dos três, despediu-se e tomou o seu rumo, desviando-se dos carros que passavam na velocidade apressada de sempre Luiz Eusébio e Jordana assistiram a cena até perderem de vista a cadeira, imponente, como se fosse um parente que partia numa viagem para um país distante. No rosto dela, o contentamento – imaginando onde colocaria em sua modesta casinha aquela cadeira “de gente rica”. Com certeza chamaria as amigas para a inauguração do novo elemento, faria bolo de fubá, café com leite, talvez levasse da padaria da esquina uns biscoitos de polvilho.

Luiz Eusébio reprimia o desejo de acenar pro móvel, antes de desaparecer no trânsito. Subiram as escadas de mármore em direção ao elevador. Jordana ia se dirigindo para a porta de acesso ao elevador dos fundos, mas foi impedida por um gesto de cavalheirismo do patrão, que abrira a porta social e, num gesto insinuante com a cabeça, indicava que ela entrasse junto com ele no mesmo elevador.

 

Luiz Carlos Lacerda.
Janeiro de 2021.